
A endometriose é uma condição ginecológica comum e enigmática, que afeta milhões de mulheres em todo o mundo. É caracterizada por presença de tecido semelhante ao endométrio fora da cavidade uterina (1; 2; 3; 4).
A doença causa um impacto significativo na qualidade de vida das mulheres e representa um desafio para os sistemas de saúde, principalmente devido à dor incapacitante, infertilidade, e ao atraso e alto custo do diagnóstico e tratamento (2; 5; 6).
O que é endometriose?
A endometriose é definida pela presença de tecido endometrial funcional (glândulas e/ou estroma) localizado fora da cavidade uterina. As localizações mais comuns incluem a superfície peritoneal, os ovários e o septo retovaginal (1; 2; 3; 4). Em casos mais raros, pode ser encontrada no pericárdio, pleura e sistema nervoso central (1; 3).
Estima-se que afete cerca de 6% a 10% das mulheres em idade reprodutiva, podendo chegar a 5% a 15% nesse período e até 3% a 5% na pós-menopausa (1; 4; 6). Em mulheres com infertilidade, a prevalência é ainda maior, atingindo 30% a 50% (1; 3; 7), e em mulheres com dor pélvica crônica, pode chegar a 50% (8).
Diferença entre endométrio e endometriose
Para entender a endometriose, é crucial diferenciar o tecido normal do patológico. O endométrio é o tecido que reveste o interior da cavidade uterina. A endometriose ocorre quando esse tecido, ou um tecido semelhante ao endométrio, se implanta e cresce fora da cavidade uterina, em locais ectópicos (1; 2; 3; 4).
A confusão comum entre os termos reside no fato de que o tecido da endometriose se assemelha e funciona como o endométrio normal, mas está em uma localização imprópria, causando os sintomas da doença (1; 3; 4).
Quais são os sintomas da endometriose?
O quadro clínico da endometriose é bastante variável e os sintomas podem ser inespecíficos. A intensidade da dor, por exemplo, não está necessariamente correlacionada com o estágio da doença ou o tempo de manifestação dos sintomas (1; 9).
Os sintomas mais comumente relatados pelas mulheres com endometriose incluem (2):
- Dismenorréia severa ou incapacitante (cólicas menstruais intensas);
- Dor pélvica crônica;
- Dispareunia profunda (dor durante as relações sexuais);
- Alterações urinárias;
- Queixas intestinais cíclicas (dor ao evacuar, diarreia, prisão de ventre e sangramento ao evacuar.
Infertilidade e impactos reprodutivos
A relação entre endometriose e dificuldade de engravidar pode envolver diversos fatores (10):
- Fatores mecânicos: em casos moderados e severos, pode haver comprometimento morfológico da anatomia pélvica, como fibrose e aderências, que afetam a motilidade tubária e o funcionamento ovariano.
- Disfunção tubária: mesmo em casos mínimos ou leves, o aumento de prostaglandinas no fluido peritoneal pode alterar a função das trompas.
- Disfunção ovulatória: a doença pode estar associada a hiperprolactinemia, síndrome da luteinização do folículo não-roto (LUF) e alterações da fase lútea.
- Alterações embrionárias: interferência com a clivagem e o desenvolvimento embrionário, elevando o risco de abortamentos espontâneos.
O que causa a endometriose?
A etiopatogenia da endometriose ainda não está completamente estabelecida, sendo considerada uma doença de origem multifatorial (4).
Fatores genéticos e hormonais
- Estrogênios: são fundamentais para a manutenção e o crescimento dos implantes ectópicos, pois as células estromais do tecido endometriótico têm a capacidade de sintetizar estrogênios a partir do colesterol (1).
- Progesterona: há evidências que sugerem que a endometriose é caracterizada por resistência à ação da progesterona (1).
- Expressão genética: a expressão aumentada de genes envolvidos com a apoptose celular, pode aumentar a sobrevida das células endometriais na cavidade peritoneal, favorecendo sua adesão à superfície (1).
Hipóteses sobre menstruação retrógrada e sistema imunológico
Conhecida como “Teoria da menstruação retrógrada”, criada pelo médico Dr. Sampson (1927), é o estudo mais aceito para explicar o desenvolvimento da endometriose. Ele indica que ocorre o refluxo de tecido endometrial através das trompas de falópio durante a menstruação, com subsequente implantação e crescimento no peritônio e ovário (1).
Embora 70% a 90% das mulheres apresentem menstruação retrógrada, apenas uma minoria desenvolve a doença, sugerindo que outros fatores – genéticos, hormonais ou imunológicos – determinam a suscetibilidade. As células endometriais que caem na cavidade peritoneal deveriam ser eliminadas pela resposta imune local. Alterações nesse sistema, como a presença de quantidades elevadas de macrófagos no líquido peritoneal e a secreção de citocinas pró-inflamatórias, fatores de crescimento e de angiogênese, podem permitir a implantação e invasão do tecido ectópico (1).
Fatores de risco identificados
Alguns fatores têm sido associados à endometriose (2; 10):
- Idade reprodutiva
- Histórico familiar
- Menarca precoce
- Infertilidade
- Baixa paridade
- Baixo Índice de Massa Corporal (IMC)
- Consumo de álcool
Como é feito o diagnóstico da endometriose?
O diagnóstico definitivo da endometriose ainda depende de uma intervenção cirúrgica com biópsia, preferencialmente por videolaparoscopia. Contudo, diversos achados em exames físicos, exames de imagem (como ultrassom transaginal e ressonância magnética), e exames laboratoriais, quando bem conduzidos, podem ter alta acurácia diagnóstica. (1).
Exames clínicos e ginecológicos
A anamnese detalhada e o exame físico são cruciais (10). O exame ginecológico pode ser normal, mas alguns sinais são sugestivos de endometriose, como (1):
- Dor à mobilização uterina;
- Retroversão uterina ou aumento do volume ovariano;
- Nodulações palpáveis no fórnice vaginal posterior ou septo retovaginal;
- Espessamento dos ligamentos uterossacros;
- Lesões violáceas na vagina.
Exames de imagem
Os exames de imagem são métodos de apoio importantes para o diagnóstico (1):
- Ultrassonografia pélvica transvaginal (USTV);
- Ressonância Magnética (RM);
- Ecoendoscopia retal;
- Urografia excretora e Urorressonância.
Laparoscopia como exame confirmatório
A videolaparoscopia com biópsia das lesões para análise anatomopatológica ainda é o “padrão-ouro” no diagnóstico definitivo da endometriose. Após a laparoscopia, a endometriose pode ser classificada em mínima, leve, moderada ou grave, com base na extensão da doença e presença de aderências (1).
Tratamento da endometriose: o que a ciência recomenda
Não existe um tratamento único para a endometriose, e a abordagem terapêutica deve ser individualizada, dependendo da principal queixa da paciente (dor pélvica ou infertilidade), da gravidade da doença, localização, idade e desejo de fertilidade (1; 7). Independente da situação, o objetivo é controlar os sintomas, bloquear a progressão da doença e restaurar ou preservar a fertilidade (4).
Recomenda-se, sempre que possível, o envolvimento de uma equipe multidisciplinar especializada para abranger todos os aspectos bio-psicossociais da paciente. Os tratamentos mais comuns atualmente incluem cirurgia, terapia de supressão ovariana ou a associação de ambas (1; 7).
Estratégias clínicas
- Tratamentos Farmacológicos (Clínicos): buscam inibir o crescimento dos implantes por decidualização e atrofia do endométrio ou pela supressão dos hormônios esteroides ovarianos. É importante notar que todos os tratamentos hormonais disponíveis para a dor associada à endometriose têm efeito contraceptivo. Não há evidências de que a supressão ovariana isolada seja efetiva para o tratamento da infertilidade (1).
- Combinações estroprogestogênicas (Anticoncepcionais Orais Combinados - ACOs): podem ser administrados de forma cíclica ou contínua, sendo que o uso contínuo pode ser mais efetivo para dor associada ao sangramento mensal, promovendo melhora na dismenorreia e qualidade de vida. São vantajosos pela possibilidade de uso prolongado, boa tolerabilidade e fácil administração (1; 7).
- Progestagênios isolados: amplamente utilizados para a dor, oferecendo uso prolongado e boa tolerabilidade. É mais indicado para pacientes histerectomizadas com doença residual, devido ao controle errático do sangramento (1).
- Análogos do GnRH (GnRHa): administrados diariamente (spray nasal) ou por injeção (diária, mensal ou trimestral). Induzem um estado de "pseudomenopausa" ou hipoestrogenismo, sendo considerados tratamento padrão para dor associada à endometriose. Podem ser usados por 3 a 6 meses. Os efeitos colaterais incluem fogachos, vagina seca, diminuição da libido e perda mineral óssea (1; 7).
- Inibidores da aromatase: impedem a conversão de androgênios em estrogênios. Em pacientes pré-menopáusicas, devem ser associados à supressão ovariana. Podem ser a primeira escolha em casos raros de endometriose pós-menopáusica (1).
Estratégias cirúrgicas
- Endometriomas ovarianos: não respondem adequadamente ao tratamento medicamentoso. A cirurgia é indicada para casos sintomáticos ou grandes. A exérese da pseudocápsula é a opção preferida em relação à drenagem e ablação, pois está associada a menor recorrência dos sintomas, menor necessidade de reintervenção e maior taxa de gestação espontânea (1; 7).
- Endometriose profunda infiltrativa (EPI): o tratamento cirúrgico pode trazer grande benefício para a dor, mas é complexo e pode exigir uma equipe multidisciplinar. Está associado a riscos como perfuração intestinal ou fístula retovaginal (1; 7).
- Histerectomia com salpingo-ooforectomia: pode ser considerada para pacientes com prole completa e falha de tratamentos prévios, mas ainda pode haver recorrência da dor pélvica crônica em até 10% dos casos (1; 7).
Importância do estilo de vida saudável no controle dos sintomas
Embora as evidências de estudos controlados sejam insuficientes para conclusões definitivas (6), alguns fatores dietéticos e de estilo de vida têm sido estudados:
Uma dieta pode influenciar a liberação de prostaglandinas, que são fatores patogênicos da dor. Ácidos graxos ômega 3 (encontrados em óleos marinhos) são menos potentes em sua função inflamatória do que os ômega 6 (em óleos vegetais), podendo diminuir os sintomas dolorosos. Suplementos de ômega 3, magnésio e vitaminas do complexo B podem ter um papel anti-inflamatório. Dietas ricas em fibras podem aumentar a excreção de estrogênio, e a redução da ingestão de gorduras pode diminuir os níveis séricos de estrogênio, o que seria benéfico em uma doença estrogênio-dependente. Dietas vegetarianas poderiam aumentar os ligantes de hormônios sexuais, diminuindo o estrogênio disponível (6).
Outras terapias complementares como, por exemplo, acupuntura, homeopatia, meditação, yoga, pilates e exercícios aeróbicos são recomendados para o alívio sintomático. Um protocolo terapêutico envolvendo fisioterapia e psicologia foi eficaz na redução do estresse e melhora da vitalidade (3; 5).
Endometriose e qualidade de vida
A endometriose está associada a uma grande morbidade física e emocional. Os principais impactos incluem:
- Dor crônica (5);
- Redução do desempenho profissional (8);
- Impacto social e nos relacionamentos (8);
- Vida sexual (8);
- Impacto psicológico (5);
Entender a trajetória das mulheres com endometriose e o impacto em sua saúde mental é crucial para que os profissionais de saúde possam oferecer um cuidado mais humanizado, promover a escuta ativa e valorizar as queixas, contribuindo para um diagnóstico precoce e um tratamento multidisciplinar eficaz (5).
Fontes
1 - NÁCUL, A. P.; SPRITZER, P. M. Aspectos atuais do diagnóstico e tratamento da endometriose. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 6, p. 298-307, jun. 2010. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-72032010000600008.
2 - CARDOSO, J. V. et al. Perfil epidemiológico de mulheres com endometriose: um estudo descritivo retrospectivo. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 20, n. 4, p. 1069-1079, out.-dez. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/1806-93042020000400008.
3 - ROLIM, J. R. et al. Endometriose: aspectos atuais e perspectivas das pacientes. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 901-915, jan./fev. 2020. DOI: https://doi.org/10.34119/bjhrv3n1-071.
4 - CONCEIÇÃO, H. N. da et al. Endometriose: aspectos diagnósticos e terapêuticos. Revista Eletrônica Acervo Saúde, Caxias, v. 24, 2019. DOI: https://doi.org/10.25248/reas.e472.2019.
5 - SILVA, C. M. et al. Experiências das mulheres quanto às suas trajetórias até o diagnóstico de endometriose. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 24, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0374.
6 - BELLELIS, P.; PODGAEC, S.; ABRÃO, M. S. Fatores ambientais e endometriose. 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-42302011000400022.
7 - NAVARRO, P. A. de A. S.; BARCELOS, I. D. S.; SILVA, J. C. R. e. Tratamento da endometriose. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v. 28, n. 10, p. 612-623, out. 2006. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-72032006001000008.
8 - RODRIGUES, L. A. et al. Análise da influência da endometriose na qualidade de vida. Fisioterapia em Movimento, Belém, v. 35, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/fm.2022.35124.
9 - MINSON, F. P. et al. Importância da avaliação da qualidade de vida em pacientes com endometriose. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 11-15, jan. 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-72032012000100003.
10 - MOURA, M. D. de et al. Avaliação do Tratamento Clínico da Endometriose. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 85-98, 1999. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-72031999000200005.




